... a criatura bate a porta
da aldeia dos magos
onde só se fala por gestos
Giorgio Agamben
"Deste solo, sejamos senhores." A Expo Haiti, com curadoria de Margarida Rache é fruto das investigações da Professora Normélia Parise no Haiti.
A Exposição foi exibida em 2011 no centro de exposições do Cidec, na Universidade Federal de Rio Grande, reservando em sua geografia expositiva um espaço dedicado ao Hino do Haiti. "Pelo país, pelos ancestrais, marchemos unidos, marchemos unidos". A relevância de seu significado se deve ao fato de não estarmos nos referindo a qualquer hino. Em sua letra já é entoado o vigor dos antepassados revelando a chave para o mergulho no imaginário social e religioso haitiano.
Apoiados nos ideais disseminados pelo iluminismo, escravos da pequena ilha do Caribe, de domínio francês, extenuados pelo expropriação de seus corpos incorporaram as divindades e através de sucessivas lutas, entre 1791 e 1804, se apropriaram do território e enviaram os donos de terra para a velha metrópole. O Haiti insubordinou-se contra o poder colonizador francês empregando os mesmos ideais revolucionários importados da metrópole, para promover a libertação dos escravos e tornar-se um estado independente.
O curioso é perceber no hino, a evocação dos ancestrais, revelando a imagem da luta e o poder dos antepassados junto a terra e o incorporal.
Contemplamos a partilha do sensível e as relações entre política e estética percorrendo o universo artístico na Expo Haiti. O espectador se depara com pinturas que exibem as mais variadas técnicas e suportes, esculturas e relevos pertencentes a diversos períodos da arte haitiana, além de documentários realizados pelo cineasta Arnold Antonin a respeito dos artistas de seu país.
Conhecemos o Haiti dos pintores do Centre d´Art e da dissidência do Foyer des Arts Plastiques nos anos quarenta, o Movimento Saint Soleil criado por Tiga junto aos agricultores da região na década de setenta, e uma série de artistas contemporâneos que tornam a arte haitiana uma aventura a ser contada. Uma constelação de artistas é apresentada através da reunião de ícones da arte haitiana, de reconhecimento internacional, como Tiga pioneiro do movimento Saint Soleil.
O artista André Pierre também figura entre os prestigiados artistas haitianos que estão na mostra. Pierre é comparado pela crítica como um dos grandes expoentes do cubismo no século XX. Através de um recorte atemporal somos confrontados com imagens cujas dobras sussurram a poesia das origens, a realidade da terra, o cosmo dos deuses e dos ancestrais.
A riqueza da Expo Haiti é conceber uma curadoria que apresenta, não apenas períodos distintos da história do Haiti, como também, privilegia o encontro entre artistas de amplo reconhecimento no establishment artístico, reunindo de ilustres pintores a artistas anônimos, cuja vigorosa expressão é não menos pulsante e grita em cores e dimensões.
Entre os documentários do cineasta haitiano Arnold Antonin, apresentados na exposição, está o La Sculpture peut-elle sauver le village de Noailles? que registra a arte em metal realizada pelos escultores de Noailles. Os trabalhos derivam de materiais inusitados como latões de óleo que através de recursos manuais são esculpidos e transformados em máscaras e alto-relevos, cujas temáticas encenam o universo de divindades que permeiam o imaginário religioso das populações que habitam a ilha.
A pintura de Payane Musset, intitulada Cerimônia vodu apresenta o cenário celebrativo dos rituais afro-caribenhos de vodu aos quais influenciaram a intelectualidade européia já na primeira metade do século vinte, tangenciando as perspectivas dos estudos associados às epifanias imaginativas dos movimentos modernistas.
O surrealismo capitaneado por André Breton tem o bastião de seu movimento fincado na medula da história, através da publicação do Manifesto Surrealista em 1924, em Paris, quando após os encontros com o grupo de pensadores surreais que se encontravam no Café Voltaire, o pintor declara: “o surrealismo repousa na crença, na realidade superior de certas formas de associações antes negligenciadas e na onipotência do sonho.” (In: CHIPP, H. B. Teorias da arte moderna, 1996, p.417) A partir da necessidade de buscar experiências que ultrapassassem o escopo no qual a cultura européia encontrava-se preponderantemente embebida, intelectuais e artistas de vanguarda lançaram-se em direção a viagens iniciáticas, não mais às terras que outrora seus antecessores, filósofos e artistas do século XIX, consideravam exóticas: o sul da Itália e o Norte da África. Os artistas viajantes povoaram com desenhos e pinturas a iconografia americana desde a conquista da América, no entanto no século vinte parece ter sido renovado o entusiasmo entre os artistas que demonstravam o afã em explorar o continente americano. O novo mundo se deslindava para os jovens europeus como o espaço onde se desenrolavam histórias e mitos extraordinários que culminavam em rituais de dança e possessão. Este novo mundo se descortinava novamente como o lugar de peregrinações e pesquisas pela América Latina.
As ilhas do Caribe e as terras da longínqua América do Sul passam a ser um território profícuo a ser explorado como campo de investigação. A lista de artistas que atraca ao sul é extensa. Os mares do Haiti recebem André Malraux, a cineasta Maya Deren, e o também membro do surrealismo Pierre Mabille. Todos são possuídos pelo Haiti e redefinem os rumos da vanguarda no século XX.
Em sua visita ao Haiti, Mabille presencia uma cerimônia vodu e se deslumbra com a potência telúrica da melodia cadenciada pelo bater dos tambores, que de acordo com a seqüência rítmica, tangencia as possessões do ritual. O ritmo seria fundamental para relacionar a música do universo à música do corpo, quando a dança e a celebração culminariam no transe “resultante da pulsação do seu coração, de sua respiração, de seus movimentos musculares e de outros ritmos profundos.” (Apud ANTELO, Raul. Maria com Marcel: Duchamp nos trópicos, 2010, p.115) O grupo surrealista ao qual Mabille participava estava interessado na percepção dos rituais e manifestações coletivas como possibilidades artísticas, na tentativa de superar a metafísica idealista cristã e se voltar para o que André Breton denominava como uma beleza convulsiva. Os rituais de possessão parecem atestar que o universal pode penetrar na singularidade e vice-versa, provocando um trânsito no qual tanto o artista quanto o devoto se tornariam vasos comunicantes na instauração de uma gramática de conexões.
Inspiradas nas mitologias africanas e latino-americanas os mitos e contos populares migraram para o imaginário artístico europeu. A noção acéfala instituída pelos surrealistas atesta a presença destes intercâmbios entre o imaginário americano e europeu. Na acefalia a cabeça, locus da razão, é destituída de sua condição hegemônica. As vanguardas se interessaram pelas manifestações coletivas religiosas ocorridas nestes trópicos, quando a imagem era ídolo e não apenas o simulacro instaurado após a modernidade, quando a imagem foi esvaziada de seu significado místico passando a vigorar meramente como mercadoria. Os surrealistas se despedem da racionalidade cartesiana para aderir à magia vívida proporcionada pelos sons, pela dança e pela confraternização apoteótica.
É revelado outro modus operandi no qual o corpo com todos os seus recursos obtêm a soberania, reverberando a primazia de sua função constitutiva: sentir a carne do mundo.
Uma das divindades mais representadas do panteon vodu é Erzulie,
a mãe guerreira esculpida por Jean Walgens Pierre na obra denominada: Roda com Erzulie. O artista situa Erzulie renascendo radiante no centro do aro de uma bicicleta-cosmos, com uma criança na mão e uma faca na outra.
Erzulie ressurge elétrica, magnética, radioativa, sujeita a eclipses... Rainha dos horizontes febris anunciando que “o que o ato de amor e de sacrifício revelam é a carne” (B ATAILLE, Georges. O erotismo, 2004, p.143).
O universo vodu é também deflagrado através das obras de André Pierre que em Marinet piéd serche descreve a mata fechada, e a presença da mártir guerreira da revolução, após ter sido consumida pelas chamas assassinas foi transformada em divindade e representada por um pássaro noturno. James Noël, representante da mais nova geração de poetas haitianos, parece descrever os processos criativos de Pierre e a crença nas divindades ao declarar: “A natureza é confissão” (NOËL, James. Des poings chauffés à Blanc, 2010, p.40).
Ilustrando a natureza vodu através da dinamização entre transcendência e imanência e prolongando a proposição de Noël, podemos supor que a arte haitiana de Tiga, André Pierre, dos escultores de Noailles, de Payane Musset e Jean Walgens Pierre, nos diz sobre a capacidade de sentir o sublime. Na fusão dos sentidos o aroma da terra, o cheiro de mato doce, o pólen das meninas a procurar relíquias... No transporte dos antepassados a aparição de uma era quente e dourada.
E assim concebemos o conceito atemporal da exposição que permite o encontro entre os que vieram e os que estão, através da epifania, do canto dos ancestrais que anunciam serem senhores deste solo.
A saliva dos ancestrais invade a terra, perfuma o vento e concebe o cereal que alimenta os sonhadores: A arte haitiana evoca o grandioso que nos antecede e nos circunda demonstrando que “não precisamos mais buscar outro mundo, porque esse mundo é nosso, e os incorporais dele fazem parte”.
Marlen De Martino